
O barulho
09/06/2016 16:32Eram dez horas da noite quando um barulho ensurdecedor surpreendeu Fabiano, tirando-o dos devaneios nos quais mergulhara havia mais de duas horas. Assustado, ele olhou ao redor. Seu coração, acelerado.
Levantou-se. Foi à cozinha. Levou um copo de vidro ao filtro, e encheu-o com água. Emborcou o copo, à boca, e sorveu de toda a água em um gole. Pôs o copo sobre a pia, e regressou ao quarto. De sobre a mesa, na qual estavam os livros que ele deveria ler, abertos nas páginas nas quais encontravam-se os assuntos que pesquisava para um trabalho, pegou do lápis, e pôs-se a folhear os livros, dando sequência ao trabalho que interrompera duas horas antes.
Esfregou os olhos com os nós dos dedos, e retomou a leitura, estafante devido à complexidade do tema.
Não haviam decorridos dez minutos, perdeu-se em conjecturas a respeito da origem do barulho. Ouviu, minutos depois, um barulho idêntico ao primeiro. Assustou-se sobremaneira.
Vasculhou o quarto, sem se levantar da cadeira. Ao decidir levantar-se e ir até a janela, ouviu um barulho. O barulho derradeiro, que fê-lo desaparecer como que por encanto. No quarto imperou o silêncio.
Lúcio e Elizabeth, genitores de Fabiano, na manhã seguinte, como de costume, chamaram-lo, batendo à porta do seu quarto. Não ouviram resposta.
- Ele dorme a sono solto – comentou Lúcio. – Deixemo-lo dormir.
- Mas ele não pode se atrasar – disse Elizabeth. – Terá prova hoje.
- Neste caso – tornou Lúcio –, vou acordá-lo.
Lúcio bateu à porta do quarto de Fabiano. Não obteve resposta. Bateu outra vez à porta, e chamou por Fabiano. Impaciente, resmungando, abriu a porta.
- Acorde, dorminhoco – disse ao mesmo tempo que apertava o interruptor.
Qual foi a sua surpresa ao ver que seu filho não estava no quarto!
- Fabiano! Fabiano! – berrou, adentrando o quarto. Os seus berros atraíram a atenção de Elizabeth, que correu até o quarto.
Lúcio disse para Elizabeth que Fabiano não estava no quarto, e ela levou a mão direita à boca e arregalou os olhos.
- Ele disse aonde ia? – perguntou Lúcio, mais para si do que para Elizabeth.
- Os cadernos dele estão aqui – disse Elizabeth, a voz entrecortada, a mexer nos cadernos -, e os livros dele estão aqui – e mexeu nos livros. E vasculhou o quarto, lágrimas a se lhe escorrerem dos olhos.
- Não se desespere, Elizabeth. Ele deve ter ido a algum lugar, e não nos avisou.
- Estou com mal pressentimento. Pressinto que algo terrível aconteceu com ele.
- Vamos beber café – disse Lúcio, para acalmar-se e acalmar Elizabeth.
Na cozinha comeram e beberam da refeição da manhã.
Passaram-se os minutos. Fabiano não regressou à casa. Elizabeth telefonou para a escola, e dele perguntou.
- Ele não compareceu à aula, dona Elizabeth – disse-lhe o diretor da escola. - Ele não fez a prova de química.
Elizabeth percorreu a vizinhança à procura de Fabiano, de cujo desaparecimento Lúcio deu notícia à polícia.
Policiais realizaram busca minuciosa nas adjacências, e não encontraram Fabiano.
No dia seguinte, Elizabeth foi encaminhada ao pronto-socorro.
Onde estava Fabiano?
Ninguém sabia onde ele estava. Emissoras de rádio e televisão locais falaram a respeito do seu desaparecimento. A população da cidade e as das cidades vizinhas comentaram o caso. Especularam a respeito de Fabiano, cujo desaparecimento intrigava a todos e revestia-se de uma aura de mistério.
Muitas pessoas apresentaram as suas sugestões de como encontrar Fabiano. Algumas afirmaram que a história era uma farsa de Lúcio e Elizabeth, que mataram Fabiano, e o enterraram no quintal – improvável, pois, na casa deles não havia quintal; outras proclamaram que Fabiano estava escondido no quarto da sua casa, ou na casa de algum parente. Houve quem falasse de uma briga entre Fabiano, seu pai e sua mãe, e que eles o expulsaram da casa.
Decorrido um mês, nenhum sinal de Fabiano encontraram.
*
Fabiano apareceu no quarto, do mesmo modo que desaparecera: simultaneamente a um barulho (segundo os relatos dos parentes de Fabiano e dos vizinhos, ninguém o ouviu). Outro detalhe interessante e inexplicável: Fabiano regressou ao seu quarto um segundo após dele desaparecer. Todavia, não regressou à nossa realidade; viveu em uma outra dimensão. Viveu dezenas de anos em uma outra dimensão, em outra galáxia. Confuso, não soube explicar o que lhe sucedeu. E o mais interessante - e eu mal posso descrever o que se passou, e peço aos leitores que me desculpem pela confusão do relato: Fabiano, já de regresso ao seu quarto, acompanhou toda a angústia de sua mãe e de seu pai, que não podiam vê-lo. E um outro barulho fê-lo tornar à nossa realidade um mês depois de haver desaparecido. Acolheram-lo seu pai, sua mãe, os seus familiares e os seus amigos. Para eles, Fabiano disse que não se lembrava do que ocorreu. Mentiu. Ele lembrava-se de tudo, mas o que lhe aconteceu era tão espetacular, que ele decidiu, e com razão, não relatar o que lhe aconteceu para os seus familiares, e para curiosos, e aos amigos. Mas o fez para uma pessoa: este ilustre escritor que vos fala, leitores. De Fabiano ouvi, pacientemente, a história. Em nenhum momento demonstrei descrença, ou o tratei com desdém, ou o considerei um louco varrido, pois já ouvi, de outras pessoas, outras histórias espetaculares.
*
Eis o relato de Fabiano:
“Eu, no meu quarto, a devanear, e, de repente, estourou um barulho, que me retirou do meu devaneio. Atentei para o que acontecia ao meu redor, à procura da origem do barulho. Assustado e apreensivo, imaginei coisas absurdas. Pensei que algum bandido tentava invadir a casa. Virei os olhos de um lado para o outro, e vasculhei o quarto. Nada encontrei. Ainda incomodado pelo barulho, tornei ao estudo, do qual minha mente logo se distanciou; perdi, segunda vez, a concentração. Outro barulho. Lembro-me de que eu me assustei. Não me recordo se então fui à cozinha beber água, ou se foi... Fui, estou certo, beber água após o primeiro barulho... E assustei-me com terceiro barulho. Perdi a consciência... a consciência, como eu a entendo. Como explicarei? Deixei de pertencer à realidade a qual pertencemos. Não sei com quais palavras explicar inominável fenômeno, que, acredito, ninguém, além de mim, jamais presenciou - assim penso porque não conheço livro em que conste uma alusão a tal barulho. A consciência que eu passei a ter da realidade não era a mesma de quando eu estava... Como dizer... Vivo? De quando eu estava vivo? Como eu estava depois de o barulho fazer-me desaparecer de modo incompreensível? Morto? Não, obviamente não, pois eu conservava a consciência de tudo o que se passava, mas eu me encontrava em outro estado, como se eu me houvesse integrado ao cosmos... Como direi? Posso dizer que eu passei a ter consciência ubíqua, pelo menos do que se passava dentro da minha casa.
“De início, transtornado, eu não sabia o que fazer. Fui transportado para um mundo desconhecido, para uma outra realidade, e a consciência que eu tinha da realidade... Não sei descrever... Indescritíveis, as minhas sensações. Não sei descrever o que senti. Hoje, mais de um ano após o ocorrido, a te falar a respeito, pergunto-me se vivi o que digo ter vivido.
“Estranhas as sensações que me incomodaram durante os primeiros instantes da minha nova consciência. Deixei de ter tais sensações assim que me acostumei com o que se passava. Não relato fielmente o que me aconteceu. Eu via o meu quarto. Via as minhas tralhas. Vi meu pai entrando no quarto, e minha mãe no quarto entrar logo em seguida. Vi tudo. Tudo presenciei. Com os olhos? Tu poderás vir a perguntar-me. Não. Com os olhos, não. Meus olhos nada viam. Era como se eu tivesse outro sentido... Uma nova consciência da realidade.
“Assumi uma condição de consciência inimaginável. Não posso descrevê-la, e espero que me entendas, e acompanhes o meu relato. Não me olhes como se olhasses para um doido. Não enlouqueci.
“Ouvi, não sei como, pois eu me sentia desprovido de corpo, tudo o que se passava na casa, e vi tudo o que lá ocorreu. Como, se eu estava desprovido de corpo?
“Acompanhei, não sei durante quanto tempo, tudo o que se passou na minha casa. Não sei explicar o que aconteceu comigo. Como desapareci do mundo real, e integrei-me, se posso dizer, ao cosmos? Não sei dizer o que aconteceu comigo. No início, desesperadora a situação. Eu nada compreendia. Nada entendia. Talvez eu nunca venha a entender o que me ocorreu.
“De repente, ouvi um barulho. Num átimo, fui transportado para outro local. Qual era o meu paradeiro? Visitei outros universos, outras dimensões, outras realidades, as quais os humanos desconhecemos. Vi o interior de estrelas e de planetas. Senti o universo a pulsar. Senti o universo vivo. Eu o concebi diferente da concepção que dele temos. Porém, pouco entendi do que vi... Aliás, para não faltar com a sinceridade, nada entendi. As forças cósmicas que atuam no universo são tão fantásticas! Conheci processos cósmicos que transcorreram em centenas de milhões de anos. Vi galáxias a fenecerem, estrelas a explodirem, e testemunhei a criação de estrelas, de galáxias, de planetas. Vagueei por outros universos, por outras dimensões, unido ao cosmos. Vivi milhões, talvez bilhões de anos, em conjunção com o universo, em um tempo infinitesimal. Pensei que eu iria enlouquecer, mas minha mente estava mais poderosa, preparada para conhecer o universo, conquanto eu nada tenha entendido...
“Conheci o passado da Terra, o seu futuro, a catástrofe que dizimará a vida na Terra, e a sua destruição daqui milhões de anos. O cosmos não é organizado pela idéia de tempo que os humanos possuímos. Não há o tempo como o entendemos, e em outras dimensões vi a origem da Terra; em outras, o seu fim.
“Perdi a noção que eu tinha da realidade, em minha nova condição, condição, esta, que, acredito, toda pessoa gostaria de ter, mas que, tendo-a, não gostaria de perpetuar a sua posse.
“Vi a Terra sendo criada, do nada, aos poucos, a se formar, durante milhões de anos. Vi a vida a surgir, embrionária, microscópica, e a desenvolver-se, a evoluir, até chegar ao estágio que conhecemos. E a evolução não cessou. Enfim, encerrou-se. Melhor, forças poderosas, que os humanos não imaginamos, a encerraram. Nessa época, a humanidade já estava estabelecida em Marte e em outros planetas, e em satélites de Júpiter e de Saturno. Vi a vida sendo ceifada em todos os lugares. A humanidade deixou de existir, a humanidade evoluída, detentora de capacidade intelectual inimaginável.
“Estabeleceram-se na Via-láctea outras espécies de seres. Outras espécies de seres vivos surgiram na Terra. Umas, gigantescas, que lembravam os antigos dinossauros, outras ainda maiores. Espécies de outras regiões do universo para cá vieram, e dominaram o planeta. Outras forças atuaram na Terra, que ficou despovoada tempos depois. E novas espécies surgiram. E durante milhões de anos persistiu a alternância de povoamento da Terra por espécies complexas e o seu completo despovoamento, até que a Terra desapareceu. Sugou-a o Sol em expansão, que explodiu, ceifando centenas de trilhões de seres vivos que habitavam todos os planetas que o orbitavam.
“Vivi a eternidade, no transcurso de poucos dias terrestres, até um barulho devolver-me ao meu quarto, ao seio da minha família".
*
Este o relato de Fabiano. Não sei a que devo creditá-lo. É fantástico. Uma mente cética, menos esclarecida, as receberia com descrença.
Poucos dias depois, Fabiano matou-se, e deixou uma carta na qual estava escrito: “Conheci o que nenhum humano antes de mim conheceu”.
*
Nota: Recebi dois pacotes. Fabiano mos enviou dois dias antes de suicidar-se. Continham quatro objetos: uma esfera composta de um metal desconhecido; um apetrecho composto de matérias desconhecidas para o qual desconheço a utilidade; uma nave em miniatura - já decorridos dois anos da morte de Fabiano, não consegui abrir-lhe as portas, sempre hermeticamente fechadas; e um papel no qual está escrito fatos ulteriores sobre a civilização humana (o mais próximo, se dará daqui trezentos anos. E desejo que não se confirme).
*
Ano 2.754. Achei, hoje, bem conservada, uma lâmina composta de material desconhecido. No cabeçalho, em caracteres antigos, há muito abandonado pela humanidade, o estranho nome de Fabiano, o autor do curto texto que lhe segue. Está datado de --/--/ 2.0--. Confirmaram-se as previsões dele. Para infelicidade da humanidade, o curto texto não foi estudado como merecia sê-lo.
—————